segunda-feira, 11 de março de 2013

Carne para canhão

Photograph by Melissa BeattieNational Geographic

Durante aproximadamente quatro anos trabalhei numa empresa do sector empresarial do Estado. Na entrevista de recrutamento disseram-me que pretendiam apostar em mim e que eu jamais seria "carne para canhão". Fiquei satisfeita e acreditei.

Quando se aproximava o fim do primeiro ano, o meu chefe informou-me, de passagem, que era política da empresa a renovação dos contratos no primeiro ano de trabalho. Percebi. 

No ano seguinte consolidei a minha situação na empresa e senti que cada vez mais me eram atribuídos trabalhos de responsabilidade, que eu resolvia de forma autónoma. Nesse ano, chamaram-me novamente e reiteraram a confiança em mim, mas que iam renovar o contrato.

No terceiro ano tornei-me finalmente necessária. O que significa que já não era eu quem recorria à pessoa X para solucionar dúvidas, mas que também eu era uma parte fundamental na resolução dessas matérias. 
Raras eram as semanas em que não trabalhava até duas ou três horas após o horário de trabalho (sem pagamento de horário extra). Como era o terceiro e último ano de renovação sucessiva de contratos de trabalho, acreditei que já tinha provado que merecia a confiança de passar para os quadros da empresa.


Entretanto, saiu nova lei que previa que era possível renovar extraordinariamente por mais 18 meses (6 + 12 meses) todos os contratos que se encontravam a terminar.

Apesar do meu novo chefe ter pedido a minha efectividade, a administração da empresa optou por assegurar a confiança em mim, que eu era uma peça chave no gabinete, que fazia parte do "core" do departamento. Não obstante, iam renovar extraordinariamente por mais seis meses e que no fim desse tempo passaria ao quadro. Entendi e acreditei. Afinal essa mesma administração tinha-me garantido que eu não era "carne para canhão". Para mim era uma questão de boa fé.

A um mês de ver a minha situação regularizada, o Primeiro-Ministro Passos Coelho fez um discurso onde sentenciava que todos os contratados do Estado não veriam os seus contratos renovados.

Ingénua como sou, mas sempre avisada, fui falar com o meu chefe sobre o peso destas declarações. A atitude foi de despreocupação. Apesar disso, ele fez o que lhe competia e foi falar com a administração da empresa que afirmou nada poder fazer para já, mas que a situação estava a ser tratada. Segundo palavras do meu chefe era desta que eu e outras pessoas íamos passar a efectivos. 

Duas semanas depois, às 18h de uma sexta-feira, fui chamada e avisada de chofre que ia ser dispensada devido a um comunicado interno de todo o Grupo que impossibilitava renovações de contrato ou contratações.

Nesse dia tornei-me finalmente adulta. Pela primeira vez na minha vida senti que havia algo dentro de mim que se tinha "quebrado" e que era impossível retroceder. 

Eu era a mais jovem do gabinete, a mais bem qualificada e a que tinha mais margem de progressão. Durante os quase quatro anos que lá estive, trabalhei na sombra e fiz trabalhos em que outros brilharam à custa do meu desempenho. Nunca pedi nada em troca. Nunca tive nada em troca. Acreditava no meu trabalho e acreditava que estava a contribuir para o bem comum daquele gabinete. Acreditava que com trabalho duro e competência que o meu dia ia chegar. E ele chegou... em forma de demissão. Afinal eu tinha sido "carne para canhão". 

Neste momento, o meu trabalho é garantido por uma senhora de 63 anos que há muito já deveria ter ido para a reforma, mas que não vai porque tem um "padrinho" dentro da empresa e porque despedi-la implica a atribuição de uma indemnização brutal. 

Os restantes colegas do gabinete rondam a idade dos 45-57 anos. Alguns deles mantêm uma segunda actividade laboral que conciliam com o horário de trabalho da empresa. Outros passam o dia a ler jornais, a ver e-mails e a fazer telefonemas para a família e amigos. Outros, por ressentimentos antigos, estão a passar informação da empresa para concorrentes. Outros aparecem e desaparecem do local de trabalho sempre que lhes é conveniente (não existe ponto). Outros, ressonam frente ao computado (juro que é verdade!). Outros têm carro da empresa para se deslocarem de casa para o trabalho todos os dias. O leasing desses carros é pago por todos nós, contribuintes. A média de leasing por carro ronda 700 euros. Dinheiro este que poderia ser investido em manter recursos humanos em vez de os despedir. Enquanto uma empresa tiver forma de cortar em recursos materiais, não faz sentido cortar em recursos humanos! Infelizmente no Estado não é assim que a coisa funciona. 

Desde que saí da empresa a sangria de jovens contratados continua. Gente qualificada. Quadros de tal forma especializados que em toda a empresa não há quem os substitua. Algumas dessas pessoas felizmente são suficientemente habilitadas para encontrar trabalho... fora do país. 

A sensação que dá é que estamos numa selva e somos os animais mais frágeis, por sermos mais novos. A diferença é que no reino animal os jovens são protegidos pelos progenitores. Neste caso, não há ninguém que nos tenha protegido. Fomos caçados e abatidos. 

Este é um pequeno caso que acontece em uma empresa pública. Como disse o Guterres, agora "é fazer as contas".



2 comentários:

  1. Quando o Poder se torna esquizofrénico e irracional, tudo deixa de ter um sentido racional e inteligível.

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  2. Verdade. Leis abstractas, aplicadas a pessoas reais.

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